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Ilustração: Piotr Dudek

Camarada Goethe

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Tradução
Gustavo Crivellari

Em Fausto II, Goethe escreve prospectivamente como ninguém sobre a exploração no início do capitalismo e sobre os primórdios do sistema de crédito.

Depois que Rosa Luxemburgo foi presa por soldados dos Freikorps em Berlim em 1919 e levada para o Hotel Eden, ela leu novamente o Fausto II de Goethe, de acordo com o relato de um dos seus assassinos. Pouco depois, ela recebeu uma coronhada e perdeu a consciência, foi baleada e jogada no canal Landwehr. Luxemburgo deve ter carregado consigo a “Tragédia” de Goethe por algum tempo, pois ela esteve escondida em vários apartamentos desde a Revolta Espartaquista, que havia fracassado alguns dias antes. Por que a revolucionária se aproximou justamente de Goethe nesse tempo de batalhas de rua? O que poderia um aristocrata burguês do final do século 18 dizer-lhe naquele momento?

Quem abre hoje o Fausto II, fica a princípio sobrecarregado. Fausto I, cuja leitura é matéria escolar aqui e ali, se destaca como uma história razoavelmente compreensível: um estudioso faz um pacto com o demônio Mefisto e se deixa rejuvenescer para conquistar uma mulher. A segunda parte, por outro lado, parece um cenário turbulento de ficção científica, incluindo uma “viagem no tempo” à antiguidade e a criação de inteligência artificial. Fausto torna-se um explorador que quer fazer um aterro marítimo e, ao mesmo tempo, não evita a violência contra as pessoas e a natureza: “quem tem o poder, tem razão”, diz Mefisto, que deveria “prover” trabalhadores e que mata um velho casal durante o sono, porque a sua mera existência está no caminho de Fausto.

Goethe estava ciente de que sua última grande obra seria perturbadora devido às suas transgressões formais e a manteve lacrada até sua morte. Depois de publicado, por um longo tempo Fausto II foi considerado incompreensível ou mesmo malsucedido. Mas hoje é preciso dizer que o contrário é verdade. Fausto II é um dos casos mais excitantes – mesmo que não seja um dos mais acessíveis – da história da literatura, uma obra visionária que captou a dinâmica capitalismo moderno já em seu início.

O poeta como economista

O burguês-aristocrático Goethe, estilizado como o “poeta nacional alemão”, tornou-se um camarada no final de sua vida? De fato, o velho Goethe comprovadamente leu alguns dos primeiros escritos socialistas. No entanto, sua ocupação com a teoria econômica e o seu tempo como Ministro das Finanças em Weimar foram provavelmente mais significativos para seus insights sobre o capitalismo, apresentados em Fausto II. Em sua biblioteca havia uma série de escritos sobre economia política, muitos dos quais provavelmente também foram estudados pelo jovem Marx, que apenas uma década após a morte de Goethe passou de questões filosóficas a econômicas. E, de fato, Goethe e Marx também parecem partilhar alguns insights.

Foi o estudioso Literário Heinz Schlaffer que, na década de 1980, realizou um estudo abrangente sobre o Fausto II a partir de uma perspectiva marxista, mostrando a que proximidade chegaram o pensamento de Marx e o conteúdo da última obra de Goethe. Em um escrito de 1844 sobre o dinheiro, Marx cita um monólogo de Mefisto: “Se posso pagar seis cavalos / Não são minhas as suas forças? / Corro e sou um homem probo / como se tivesse vinte e quatro pernas.” Marx interpreta: “As qualidades do dinheiro são minhas – de seu possuidor – qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade.«

Há alguns anos, o ex-chefe do Bundesbank, Jens Weidmann, causou uma pequena controvérsia ao apontar Fausto II como um alerta precoce contra uma “política monetária inflacionária” dos bancos centrais.

Marx discutirá novamente essa ideia mais tarde em O Capital, quando ele fala de “máscaras econômicas de caráter”. Para Marx, as e os capitalistas agem como “personificações das categorias econômicas […], portadores de certas relações e interesses de classe”. Quem eles são no mundo e a lógica conforme a qual agem não dependem de sua personalidade, mas de títulos de propriedade impessoais. As personagens da tragédia de Goethe funcionam de forma muito semelhante. A segunda parte do Fausto pode ser lido como uma “alegoria do século XIX”. As personagens não representam apenas a si mesmas, mas incorporam momentos de estruturas abstratas e complexos de ideias, como os do início do capitalismo.

A potência da condensação literária do início do capitalismo feita por Goethe também pode ser vista no fato de que o Fausto II é repetidamente assombrado por debates correntes sobre a emissão de dinheiro e o papel dos bancos centrais. Há alguns anos, o ex-chefe do Bundesbank, Jens Weidmann, causou uma pequena controvérsia ao apontar Fausto II como um alerta precoce contra uma “política monetária inflacionária” dos bancos centrais. Outros economistas também veem Goethe como um dos primeiros críticos da política monetária expansionista. Mas quem lê Fausto II com atenção, interpreta a tragédia de outra forma: Goethe descreve de forma bastante materialista como uma revolução nas relações econômicas – neste caso a criação de uma nova tecnologia financeira – produz novos valores e modos de vida.

As folhas mágicas de Fausto

No início da segunda parte, Fausto e Mefisto chegam à corte do imperador, que está a discutir com o seu Conselho de Estado uma profunda crise econômica do seu império: os odres estão vazios, os porcos estão magros e o país está “saqueado e devastado”. O mais urgente, no entanto, é que falta dinheiro à Corte. Mas Fausto e Mefisto têm uma solução – a introdução do papel-moeda. Goethe discute, assim, uma das questões econômicas mais importantes dos séculos XVII e XVIII.

Naquela época, numerosos Estados estavam experimentando – às vezes com mais sucesso, às vezes com menos – com papéis de crédito e dinheiro; em 1789, por exemplo, a Assembleia Nacional revolucionária na França decidiu emitir os chamados assignats, um tipo de títulos do governo que eram cobertos por propriedades de Igreja expropriadas e que substituíram o dinheiro de metal como meio de pagamento por um tempo. Na maioria dos casos – incluindo na França – estas experiências terminaram em inflação e crises. É ainda mais interessante como Goethe discutiu a questão do papel-moeda em Fausto II.

Guiado por Fausto, o imperador finalmente assina o papel-moeda. As “folhas mágicas” são “multiplicadas milhares de vezes” e revivem a economia: açougues, padarias, tavernas entram em pleno funcionamento, dívidas são pagas e todos aceitam o papel-moeda como substituto do ouro. Embora o dinheiro novo seja teoricamente lastreado no ouro que se supõe estar na terra em todo o Império, Fausto expressa ao mesmo tempo o verdadeiro princípio do dinheiro moderno: “Mas os espíritos de entendimento, dignos de olhar profundamente / confiam ilimitadamente no ilimitado.” Ilimitadas são tanto a quantidade potencial de cédulas de papel como a confiança de que, em caso de dúvida, estas poderão ser trocadas por ouro. O que é encenado aqui é o nascimento do dinheiro moderno a partir do espírito da ficção, pois é a fantasia do poder do Estado que diz quanto ouro realmente existe no solo.

Muito mais importante do que uma referência de valor “real” é a confiança no pagamento. O novo dinheiro de crédito cria assim uma economia abrangente de credores e devedores. Marx também enfatizou que o dinheiro de crédito está no início da modernidade capitalista: “o crédito público se torna o credo do capital. […] A dívida pública torna-se uma das alavancas mais enérgicas da acumulação primitiva.” O velho dinheiro metálico revela-se demasiadamente lento e limitado para apoiar a expansão capitalista por si só. Segundo Marx, a dívida estatal dá origem “ao jogo do mercado de ações e à bancocracia moderna”, que “se colocam ao lado dos governos e, graças aos privilégios recebidos, são capazes de emprestar dinheiro a eles”. Nessa cena, Fausto e Mefisto incorporam alegoricamente esses bancos.

Não há como voltar atrás dos brutais processos de modernização do capital, a única saída é através deles.

Era claro para Goethe que as crises econômicas do século XVIII resultaram essencialmente de dificuldades em lidar com a nova moeda de crédito. No entanto, o enredo de Fausto II sublinha mais os efeitos produtivos do papel-moeda do que os seus potenciais para crises. Dessa forma, Goethe deve ter adivinhado que o novo dinheiro prevaleceria apesar de sua notória propensão à crise. Em Fausto II, O Império Alemão entra novamente em crise depois da cena do papel-moeda. Entretanto, essa não é de natureza econômica, mas se origina das rixas entre os pequenos estados feudais e os seus príncipes.

O texto de Goethe, portanto, adverte menos sobre a inflação ou a falta de lastro do valor real do dinheiro, como algumas interpretações monetaristas da economia dominante afirmam até hoje. Em vez disso, ele revela que o novo sistema monetário de crédito requer a longo prazo uma economia completamente diferente da rígida ordem feudal. Esse sistema precisa de empresários, de trabalhadores, de capital e de um futuro rentável.

A visão de novos mundos

É precisamente esse tipo de economia que é invocado na personagem de Fausto no final do drama. O projeto de apropriação de terras de Fausto, o seu desejo de expansão e a sua violência fazem dele um dos primeiros capitalistas. Fausto não é um latifundiário feudal que tem produção para as suas necessidades e para as dos seus súditos, mas um empresário que age conforme uma preocupação abstrata com o aumento da sua riqueza, como se tivesse de servir aos seus credores. O impulso eterno de Fausto para a ação também representa um capitalismo impulsionado pelo dinheiro do crédito.

Como salientou o estudioso Literário Joseph Vogl, uma nova imagem do homem está condensada na personagem de Fausto – o Homo Economicus, que a jovem ciência da economia política estava a inventar naquele momento. Essa pessoa capitalista não trabalha primariamente para a satisfação das necessidades, mas para obter excedentes. É precisamente esse princípio que Marx entende como uma característica estrutural do capitalismo: a produção de mais-valor pelos trabalhadores, a partir da qual, no final, os juros dos empréstimos também são pagos.

Fausto II aparece em um limiar de épocas e condensa o conhecimento econômico de seu tempo numa grande obra literária. Trata da desintegração dos poderes políticos do feudalismo e da nova economia capitalista, e também expõe a violência desta: “guerra, comércio e pirataria, / eles são uma trindade, não podem ser separados”, sabe Mefisto. Que o capitalismo é um processo cego e brutal é mostrado no final a Fausto. Depois de se cegar no quinto ato, ele ouve os trabalhadores escavando e acredita que estão cavando uma vala para o aterro marítimo. Na realidade, trata-se de sua sepultura. Fausto, no entanto, tem outro insight na manga: não há como voltar atrás dos brutais processos de modernização do capital, a única saída é através deles.

Mesmo no momento de sua morte, Fausto ainda formula o sonho de uma nova sociedade desta forma: “Eu gostaria de ver uma multidão / em uma terra livre com um povo livre. / Por um instante, eu poderia dizer: / se demore, você é tão bonita.” O capitalismo brutal, como se pode interpretar dessa passagem, inevitavelmente dá origem à visão de uma sociedade diferente e melhor.

Sobre os autores

Matthias Ubl

é coeditor da Jacobin alemã.

Cierre

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Published in Análise, Europa, Humanos and Política

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